Jonas, o mais novo, estava de cócoras perto do fogo, com um graveto seco na mão. Seus olhos, que a idade ainda não tinha conseguido suavizar, fitavam as chamas com intensidade.
— É uma injustiça — sibilou ele, sem olhar para o companheiro que observava o rebanho disperso nas sombras, o cajado apoiado ao lado. O graveto se partiu com um estalo seco entre os dedos do menino. Ele atirou no fogo e as brasas voaram.
— O Imperador se julga o dono do mundo, não é? Mandando todos de volta aos seus lugares de origem para serem contados, como se fôssemos gado.
O ancião, o rosto vincado pelas intempéries de incontáveis invernos, mas, com um brilho sereno nos olhos, suspirou baixinho.
— É o que fazem os poderosos, meu jovem. Sempre foi assim.
— E nós? — o rapaz virou-se, os olhos faiscando. Sua voz, antes apenas um murmúrio irritado, cresceu em intensidade.
— E eu? “Volte à sua cidade natal.” Qual cidade? Eu não tenho uma. Não tenho linhagem. Nem um sobrenome para ser escrito ao lado de um pai que nunca conheci!
O jovem gesticulava com as mãos calejadas, os músculos magros do braço tensionados.
— Eles têm suas casas, seus pais, suas árvores genealógicas que remontam a sabe-se lá quem! E eu? Quem sou eu neste censo, Matias? Ninguém. Um órfão sem nome, sem raiz, sem nada!
O velho se aproximou um pouco mais da fogueira, o crepitar das chamas preenchendo o breve silêncio. A luz bruxuleante suavizava as linhas duras no rosto do menino, mas não conseguia disfarçar a profunda amargura em seus olhos.
— Você não é ninguém, Jonas. Nunca foi.
O rapaz deu uma risada curta e amarga, que não tinha alegria alguma.
— É o que dizem os que têm um nome para chamar de seu. É fácil para eles. Eu vejo os outros. Cada um tem um lugar para ir, uma família para reclamar. Eu só tenho essas ovelhas, e elas nem sequer são minhas.
— Elas precisam de você — disse o pastor mais velho, sua voz calma e firme, como um riacho sereno. Ele estendeu a mão enrugada para o fogo, aquecendo-a. — Assim como você precisa delas. Quem as guardaria nesta noite? Quem as protegeria dos lobos, do frio, se não fôssemos nós?
O menino bufou, virando o rosto para o lado, para a escuridão que engolia o restante da colina.
O ancião observava-o, o olhar sereno varrendo a paisagem antes de pousar no rapaz. As rugas de seu rosto, marcas de sol e tempo, pareciam se aprofundar à luz bruxuleante. O silêncio, apenas quebrado pelo estalar da lenha e pelo lamento distante de uma ovelha, estendeu-se denso.
— Sabe, Jonas — começou a voz grave e macia como um bálsamo, sem pressa. — Houve uma vez, há muitos séculos, um povo que viveu como escravo numa terra estrangeira. Um povo sem voz, sem lugar.
O jovem não ergueu os olhos do fogo. Continuou a atiçar as brasas, como se a força de sua frustração pudesse ser transferida para o calor moribundo.
— Eram hebreus no Egito — prosseguiu o velho, quase como se contasse para si, mas as palavras eram uma rede pacientemente tecida para o menino. — O Faraó, com medo do número deles, ordenou que cada menino recém-nascido fosse jogado no Nilo.
O graveto nas mãos do rapaz parou. Uma linha tênue de fumaça subiu do ponto onde ele o segurava, quase sem vida. Não olhou para o companheiro, mas seu corpo, antes tão tenso e vibrante com raiva, agora parecia ter congelado.
— Então uma mãe — o ancião pausou, o tom ganhando uma nota de carinho — não queria ver seu filho morrer. Escondeu-o por três meses e, quando não pôde mais, fez uma cestinha de junco e betume, e colocou o bebê ali. Depois, deixou-o flutuar nas águas do Nilo, entre os juncos.
O menino apertou os lábios, uma ruga de incredulidade vincando sua testa. O bebê, indefeso, jogado à mercê do rio. A imagem era sombria demais para sua própria desolação.
— A irmã do menino ficou de longe, observando. E sabe quem encontrou aquela cesta? — O pastor mais velho esperou, o olhar fixo no perfil do jovem.
Este deu de ombros, um movimento curto e brusco.
— A própria filha do Faraó.
Um sibilo escapou dos lábios do rapaz, um som de surpresa e desconfiança. Ele ergueu finalmente o rosto, os olhos escuros brilhando à luz das chamas, buscando os do ancião.
— A princesa. Ela desceu para se banhar no rio, viu a cesta e, quando a abriu, o bebê chorou. Um pequeno hebreu, um “ninguém” na visão do pai dela, destinado à morte. Mas a princesa, Jonas, sentiu compaixão. Ela o pegou, levou-o para o palácio. E o chamou de Moisés, “tirado das águas”.
O velho inclinou-se ligeiramente para a frente, com o cotovelo apoiado no joelho.
— Ela o criou, Jonas. A filha do próprio Faraó, que queria ver todos os meninos hebreus mortos, amou aquele bebê. Deu-lhe o melhor que o Egito podia oferecer. Vestiu-o com as mais finas túnicas, ensinou-lhe a sabedoria dos escribas, a arte da guerra. Ele não tinha uma gota de sangue egípcio em suas veias, mas foi um príncipe. Um filho, para ela. E para o palácio.
O menino soltou o graveto, que caiu no fogo e se consumiu rapidamente. Seus olhos, antes cheios de escárnio, agora traíam uma curiosidade relutante. Um bebê abandonado, um hebreu odiado, tornado príncipe? A história era um nó na sua própria narrativa de desespero. Não era possível. Era um conto de fadas, talvez, para meninos tolos. A amargura ainda pesava em seus ombros, mas um pensamento, fino como uma lasca de osso, começou a arranhar sua mente. E se um “ninguém”, de fato, pudesse ser “alguém”? Ele torceu o nariz, a desconfiança ainda um escudo, e olhou para as estrelas distantes.
— Ele não era de verdade um egípcio — murmurou, a voz áspera, mais para si do que para o ancião. — Não importa o que ela fizesse. Ele não pertencia àquele lugar.
O pastor mais velho sorriu, um sorriso pequeno e sábio que não alcançava os lábios, mas iluminava seus olhos. Ele não respondeu imediatamente, apenas acenou com a cabeça, como se soubesse que aquelas palavras seriam suficientes para semear uma pequena semente na terra rachada do coração do jovem.
O silêncio voltou, mas agora não era com o mesmo peso de antes. Havia algo novo no ar, algo que o velho esperava que brotasse.
O ancião deixou a pausa preencher o espaço, observando as fagulhas subirem e sumirem na escuridão sem fim. O menino remexia um galho seco na brasa, o estalar da madeira ecoando a inquietude que ainda borbulhava dentro dele.
— O que um homem é, Jonas — começou a voz grave e macia, cortando o som dos grilos sem pressa — não se escreve apenas no sangue que corre nas veias. Há outras tintas, menino. Tintas de escolha, de sacrifício, de amor que brota onde não se esperava.
O galho do rapaz parou, a ponta carbonizada pairando sobre as chamas. Ele ergueu os olhos, sem realmente olhar para o companheiro, mas para um ponto além dele, onde as estrelas começavam a piscar no céu escuro como alfinetes de luz.
— Havia uma vez — prosseguiu o pastor mais velho, a mão rugosa afagando o cajado que repousava ao seu lado — uma jovem. Ester era seu nome. Uma menina de Susã, de um povo distante da sua terra, mas que Deus não esqueceu. Órfã desde cedo, sem pai nem mãe para acolhê-la.
O jovem encolheu os ombros, um tique antigo de sua própria vida, como se o frio da orfandade ainda o perseguisse.
— Deus, em Sua sabedoria, colocou em seu caminho um homem. Seu primo, Mardoqueu. Ele não tinha a obrigação de cuidar daquela menina, não era seu filho, não era sua responsabilidade imposta. Mas ele a tomou para si. Como se fosse sua própria filha, com um carinho que transcende o parentesco distante. A ergueu, não por dever, mas com o coração. Ensinou-a, protegeu-a, deu-lhe um lar e um nome que ela pudesse carregar com dignidade. Foi o amor dele, Jonas, que a criou. Não o ventre que a gerou, mas o abraço que a acolheu.
A cada palavra do velho, o menino apertava o galho em sua mão. Não era raiva, o ancião notou, mas uma tensão, como quem segura algo frágil demais para não quebrar.
— A vida seguiu, e os caprichos dos reis levaram Ester ao palácio, a um concurso para ser a nova rainha — o pastor continuou, a voz como um sussurro contra o vento frio. — E foi assim que Ester, a órfã, a filha adotiva do coração de Mardoqueu, ascendeu ao trono de um império vasto. Tornou-se rainha, mas nunca esqueceu as lições de seu pai adotivo. As raízes que ele plantou nela eram profundas, mais profundas que qualquer linha de sangue. As raízes que haviam sido plantadas em seu coração.
O rapaz moveu-se desconfortável, um brilho de desconfiança nos olhos. A história parecia bonita demais.
— E então, Jonas, a tragédia. Um homem, Hamã, tramou a destruição de todo o povo de Ester. Um decreto foi assinado, a morte se aproximava. O povo, sem esperança, clamava. Quem poderia salvá-los? O rei? Ele não se importava. Os nobres? Estavam cegos.
O velho olhou para o menino, cujos olhos agora seguiam cada movimento de seus lábios.
— Foi Mardoqueu, o pai que escolheu amar, que enviou uma mensagem a Ester, a filha que escolheu acolher. “Quem sabe se para um tempo como este chegaste ao reino?”, ele lhe disse. Era um chamado, Jonas. Um chamado para além do seu sangue, para além do seu trono, para a herança que havia sido planta em seu coração. A rainha, aquela sem linhagem real, mas com um laço de alma, de amor, com seu povo e com o homem que a acolhera da orfandade, arriscou a própria vida. E salvou a todos.
O ancião fez uma pausa, deixando o fogo estalar. O jovem não disse nada, mas seu corpo, antes tenso, parecia ter afrouxado um pouco. Ele observava a brasa que se desfazia, pequenas cinzas voando.
— Vês, Jonas? Deus, em Seus momentos mais críticos, quando um povo está em perigo, quando a fé vacila, não busca apenas o que é do sangue. Ele usa o que é do coração. Ele usa os que escolhem amar, os que estendem a mão para quem não é “seu”. Moisés, o bebê adotado, se torna o libertador. Ester, a órfã amada, se torna a rainha que salva seu povo. Eles não eram “do sangue”, Jonas. Eram do amor. Do amor que não se curva a linhagens, mas se ergue por uma escolha.
As palavras pairavam no ar gélido da noite, mais concretas que as sombras que dançavam. O menino apertou os lábios, a testa levemente franzida. A ideia de que o amor pudesse ser escolhido, de que não precisasse ser uma imposição do nascimento, era uma semente estranha em seu solo árido. Ele pensou em si, um menino sem linhagem, sem nome, sem um “seu” para chamá-lo. Mas e se o “seu” pudesse ser construído? A imagem de Ester, uma órfã como ele, ascendendo a um trono e salvando um povo, parecia quase um desafio lançado em sua própria face. Ele respirou fundo, o ar preenchendo seus pulmões com uma estranha mistura de frio e uma incipiente esperança.
O ancião, com o cajado entre as mãos calejadas, observava a vila, os olhos fixos num ponto distante.
— Muitos reis vieram de lá, Jonas — a voz rouca murmurou, quase um sussurro contra o sopro do vento. — Davi, o pastor que se tornou rei. Mas há uma promessa antiga, menino. Uma que vem do profeta Isaías.
O rapaz, aninhado mais perto da fogueira, esfregava os braços finos. As histórias vinham martelando em sua cabeça. “Amor escolhido”, o velho disse. “Adoção.” Conceitos estranhos para um menino que sempre sentia que não fora escolhido por ninguém.
O pastor mais velho fechou os olhos por um momento, como se recitasse algo guardado há muito tempo no coração.
— “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu” — ele começou, a voz ganhando uma reverência profunda. — “E o principado está sobre os seus ombros, e se chamará o seu nome: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz.”
O jovem franziu a testa.
— Pai da Eternidade? — O conceito parecia impossível — O que quer dizer com isso?
O ancião abriu os olhos e olhou diretamente para o menino.
— Não é que Ele seja um pai comum, menino. Isaías fala de Alguém que viria para nos reconciliar com o verdadeiro Pai. O Deus de Abraão, de Isaque, de Jacó. O Deus que nunca abandona, que nunca esquece. Este Menino prometido seria como… — ele pausou, buscando as palavras certas — como o primogênito entre muitos irmãos. Aquele que abriria o caminho para que todos pudéssemos ser chamados filhos de Deus.
A raiva habitual no peito do rapaz diminuíra, substituída por uma incômoda inquietude, uma pontada de esperança que ele relutava em reconhecer.
— Isaías também disse: “O povo que andava em trevas viu uma grande luz; sobre os que habitavam na região da sombra da morte resplandeceu a luz” — o velho continuou, seu olhar perdido na distância. — Esta luz, Jonas, é a redenção. É o próprio Senhor dizendo “Vocês não estão sozinhos. Vocês não são órfãos. Eu sou o Pai de vocês.”
De repente, um som de cascos ecoou na distância. O ancião virou-se, atento. Eram viajantes, talvez comerciantes voltando de Belém. O pastor levantou-se e acenou, e os homens pararam brevemente, ainda montados.
— Paz seja convosco, ancião! — gritou um deles, um homem de barba grisalha.
— E convosco também — respondeu à voz rouca. — Trazem notícias de Belém?
O homem hesitou, depois sua voz ganhou uma mistura de espanto e temor.
— Há rumores estranhos, pastor. Dizem que há poucos anos nasceu um menino… e que magos do Oriente vieram procurá-lo, seguindo uma estrela. Herodes ficou enfurecido, ordenou a morte de todas as crianças de Belém. Foi um massacre terrível.
O menino sentiu o sangue gelar nas veias. O velho permaneceu imóvel, mas seus dedos apertaram o cajado.
— Mas o menino? — perguntou, a voz tensa.
— Dizem que escapou. Seus pais fugiram antes que os soldados chegassem. — O homem baixou a voz. — Alguns sussurram que Ele era o prometido nas profecias. O Messias. O que Isaías anunciou.
O ancião fechou os olhos, e uma lágrima solitária desceu por seu rosto vincado, perdendo-se na barba grisalha.
— Ele está entre nós — sussurrou, mais para si do que para qualquer outro. — A Promessa se cumpriu. O Menino nasceu.
O rapaz olhou para o companheiro, confuso e assustado.
— Mas… Matias, se Ele teve que fugir… se crianças morreram por causa Dele…
O pastor pousou a mão firme no ombro do jovem.
— O mundo rejeita a luz, Jonas, porque ama as trevas. Mas a luz veio mesmo assim. Este Menino, que agora deve ser um menino ainda, está em algum lugar, crescendo. E quando chegar o tempo, Ele trará a salvação e a redenção prometida. Ele nos mostrará o caminho de volta ao Pai.
Os viajantes seguiram seu caminho, e o silêncio voltou às colinas. O menino olhou para o céu estrelado, e uma pergunta brotou de seu coração faminto.
— Matias… se este Menino veio para nos levar de volta ao Pai… isso significa que até eu… até um órfão sem nome como eu…
O velho sorriu, um sorriso que iluminou as rugas de seu rosto cansado.
— Significa exatamente isso, Jonas. Deus olha para cada órfão, cada rejeitado, cada ninguém e diz “Você é meu filho. Eu escolho você.” Não pelo seu sangue, não pelo seu nome, mas porque Ele é um Pai que adota, que redime, que acolhe todos os que buscam o Seu nome.
As palavras perfuraram a última camada de gelo que envolvia o coração do rapaz. A ideia de que Deus, o próprio Criador, pudesse olhar para ele — um menino sem linhagem, sem família — e chamá-lo de filho era como água fresca no deserto.
— E este Menino… — o jovem murmurou, a voz trêmula — Ele seria como… um irmão?
— O primogênito entre muitos irmãos — confirmou o ancião, sua voz suave. — Aquele que abre o caminho para que uma família inteira seja formada. Uma família não de sangue, mas de espírito. Filhos do mesmo Pai.
O menino sentiu algo se romper dentro dele. Não era raiva, não era amargura. Era um muro que desabava, deixando entrar uma luz que ele nunca soubera que existia.
— Ele… Ele está vivo, então? — perguntou, e pela primeira vez em muito tempo, havia esperança genuína em sua voz. — O Menino prometido?
— Está — disse o velho, olhando para as estrelas. — Em algum lugar, sob este mesmo céu, Ele cresce. E um dia, Jonas, quando o tempo for cumprido, Ele trará a redenção. Ele nos mostrará quem é o verdadeiro Pai, e nos dará o direito de sermos chamados filhos de Deus.
O rapaz levantou-se lentamente, com os olhos fixos no horizonte onde Belém repousava na escuridão. Seus pés, antes pesados pela desesperança, agora pareciam mais leves. Pela primeira vez, ele não se sentia como uma folha solta ao vento.
— Um dia, então — sussurrou, mais para si — um dia eu poderei conhecê-Lo. O Irmão que me mostrará o caminho para o Pai.
O ancião assentiu, o sorriso ainda no rosto, os olhos brilhando à luz da fogueira.
— Um dia, meu menino. E até lá, lembre-se “você nunca esteve sozinho”. O Pai já estava olhando para você, esperando o momento de chamá-lo de filho.
A noite nas colinas da Judeia ainda era fria, e o vento ainda cortava. Mas algo havia mudado. O jovem pastor não era mais o mesmo menino amargurado que atiçara as brasas com raiva. Agora, ele era um menino com esperança. Um menino que sabia que, em algum lugar, o Messias crescia e que através Dele, o caminho de volta ao Pai estava sendo preparado.
E naquela noite, sob as estrelas da Judeia, Jonas entendeu que a adoção não era apenas uma história de Moisés ou de Ester. Era a sua também. Era de todo órfão que buscasse o nome de Deus e encontrasse, não um juiz distante, mas um Pai que o esperava de braços abertos.